Um homem, com 83 anos de idade, vive há mais de 50 anos à beira de uma lagoa do Rio Jacuí, próximo à Vale Verde, município do Vale do Rio Pardo. Ex-soldado, solitário por opção, essa figura ganhava a vida catando conchinhas para vender em Porto Alegre, onde remava de canoa pelo rio, por vários dias, até chegar à capital. Não tem cachorro, nem gato ou papagaio. Nunca visitou um médico, nem dentista, além de não precisar de tecnologia ou luxo algum para ser feliz.
Um homem chamado Siegfried Helmut Geib, saiu de São Leopoldo quando tinha aproximadamente 30 anos de idade, década de 1950 e se aventurou pelo Rio Jacuí, em busca de conchas, mais conhecidas como madre-pérola, que eram muito usadas na época para confecção de botão para camisas, casacos e ternos, entre outros. Ele enchia sua canoa e remava até Porto Alegre, uns 120 km de distância para vender seu produto. A jornada levava em média uma semana, isso com tempo bom.
Quando chovia, a canoa era atracada em uma barranca e um acampamento era montado pelo navegador solitário. Quando a chuva parava, era hora de prosseguir a viagem, que nestes casos levava o dobro do tempo. Outro empecilho era o vento, que muitas vezes soprava ao contrário, impedindo a navegação e fazendo com que o aventureiro parasse com sua viagem novamente.
Ao chegar em Porto Alegre se dirigia a uma fábrica que comprava suas conchinhas, que eram pagas por quilo. O material, muito valioso na época, não era só uma peça decorativa, e sim, fonte de renda para o sustento de um homem solitário por opção, que não gostava de ter chefe e nem obedecer a ordens.
Já a volta para casa, muitas vezes era mais rápida, pois Siegfried geralmente conseguia uma carona, ou seja, era rebocado por uma embarcação a vapor, que o deixava no seu destino em menos de um dia. Atualmente, as conchas não servem mais, pois a indústria já produz a matéria-prima para confecção de botões. Hoje em dia, as conchinhas ainda são encontradas à beira do Rio Jacuí, mas não chamam mais a atenção, pois não possuem mais valor comercial.
Sem endereço
Em pleno século 21, o que mais atrai as pessoas é a facilidade de acesso às tecnologias, que estão presentes na vida da grande maioria da população. Internet, celular, carros importados e robôs são evoluções humanas que fazem a cabeça de homens e mulheres, pela questão da comodidade que podem oferecer, e, até mesmo, pela vaidade de possuí-los. A concepção de felicidade nos dias de hoje é ter uma bela casa, com um lindo carro, ter um emprego de status, ter contatos influentes e viajar pelo mundo.
Você pode até concordar que esse é o caminho para ser feliz de verdade. Porém Siegfried é muito diferente e não concorda com isso, pois mora em um local totalmente isolado, em frente à uma lagoa que sai do Rio Jacuí, sozinho, há mais de 50 anos, sem ninguém. Nem cachorro, nem gato, nem papagaio. Somente a mata no jardim do quintal, o céu azul como um cartão postal e as águas que cruzam em frente a sua casa.
Geib, como é mais conhecido, resolveu viver uma vida diferente, sem endereço, sem carteira assinada e sem patrão e muito menos mulher e filhos. Construiu uma casinha simples, de tábua, com dois andares por causa das enchentes. Para se chegar ao local, não existe uma referência concreta, pois o rio é sua rodovia estadual e uma lagoa é sua estrada vicinal, que leva à moradia deste homem, que vive de modo muito simples, mas feliz. A única localização que serve como ponto referencial é o trajeto do Rio Jacuí que corta o município de Vale Verde, nas proximidades do Balneário Monte Alegre.
Seu único meio de transporte é uma canoa, que há pouco tempo recebeu um motorzinho. Seus braços, cansados de muitas remadas, já não suportam mais distâncias longas. Em seu paradeiro no meio do mato, os únicos vizinhos são os animais silvestres, que se aproximam de vez em quando, como os graxains, capivaras, tatus e os chatos dos mosquitos, que são capazes de afugentar até os passarinhos em determinadas épocas, mas que não chegam a chatear esse velho homem.
Sua rotina de vida é pescar, descansar, dormir, comer, meditar e não se preocupar com o que acontece no planeta. Sabe exatamente os lugares onde sempre dá peixes, pois já conhece cada pedaço do rio e das lagoas. Mesmo quando liga seu radinho a pilhas e houve algum noticiário, Geib sabe que não há crise mundial que o afete, pois ele não tem investimentos na bolsa de valores, nem emprego para perder, muito menos conta telefônica, luz, água e IPTU para pagar e nem família e filhos para sustentar.
Sua única preocupação é não ser chateado por algumas visitas indesejadas de pessoas que querem saber um pouco mais sobre esse seu estilo de vida pouco comum. Para sua sorte, quem aparece só de vez em quando são alguns pescadores, que moram na redondeza e são velhos conhecidos seus. Além deles, muito raramente aparece alguém, a não ser uns poucos amigos que querem prosear com o morador solitário.
Amigos
Hilberto Kellermann é um mecânico de Vale Verde que o visita regularmente, pois gosta muito de conversar com o Geib e ouvir dele histórias do passado e das vantagens e dificuldades de morar sozinho no meio do nada. Outro amigo que o visitou recentemente, e isso depois de 15 anos sem terem tido algum contato, se chama Dalmeci Teixeira, um agricultor que mora em Monte Alegre, interior do município a aproximadamente dez quilômetros de distância. Os dois viveram muitas histórias juntos e tem vários amigos em comum. Outro parceiro seu é um pescador chamado Podolirio Manoel de Souza que mora em uma ilha do Jacuí a aproximadamente três quilômetros de distância e leva um estilo de vida parecido em alguns aspectos. Porém, este tem família, animais de criação e convive com um número maior de pessoas.
De temperamento forte, esse velhinho tem uma lucidez incrível e é capaz de falar sobre qualquer assunto. Porém, usa o método da tolerância zero para perguntas ou afirmações que considera inúteis ou idiotas, como por exemplo: Ao ser perguntado por um visitante sobre quais espécies de peixes poderia pescar na lagoa em frente a sua casa, respondeu: “– O senhor não vai querer que eu mergulhe para saber quais peixinhos estão nadando aqui por perto? Vai?”
Geib fala alemão e espanhol, além do português e é um ótimo cozinheiro, pois aprendeu a arte da cozinha enquanto serviu o quartel. Seu prato predileto é o ensopado de peixe com pirão. Também adora comer banana. Mesmo não convivendo com os acontecimentos mundiais diariamente, ele não se aperta para debater assuntos dos mais diversos, pois durante esta entrevista, demonstrou ter um conhecimento bem amplo e até aprofundado em alguns assuntos, mas principalmente sobrevivência e solidão.
Mesmo enxergando com um olho só, não usa óculos e consegue colocar uma linha em uma agulha. Sua saúde é muito boa, pois nunca visitou um médico e quando aparece algum incômodo, ele se cura com chás e ervas que aprendeu a usar. Adora fumar cigarros além de tomar cerveja e cachaça.
Sem pressa
Geib se diz muito feliz com o modo de vida que leva, sendo que não pretende mudar em nada sua rotina, quer continuar vendo os dias amanhecerem e anoitecerem, sempre do mesmo jeito, sem novidades, sem compromissos e sem surpresas desagradáveis. Para ele o tempo passa muito lentamente, tanto que um ano parece três, e isso o deixa feliz. Afirma que não tem pressa nenhuma de envelhecer e muito menos de morrer, pois se sente um velho jovem.
Acordar e dormir sem o barulho dos vizinhos, sem a zoeira do trânsito e sem as sirenes da polícia são fatores que fazem com que Siegfried viva convicto de que escolheu o lugar certo para morar. Para ele não tem sentido viver em meio à ganância, mentira e maldade só para conquistar bens materiais. Estresse é uma palavra que não faz parte do vocabulário deste homem, que tem uma riqueza interior maior do que se possa imaginar.
Geib já foi atleta. Costumava remar 120 quilômetros entre Vale Verde e Porto Alegre, para levar conchas juntadas nas praias do Jacuí. Mas o peso dos anos está deixando sua marca. Extrair mel é uma das poucas atividades rentáveis que Geib ainda consegue realizar. Mas apesar da idade permanece lúcido e sarcástico. Perguntado se visita médico de vez em quando, desdenha.
— Prá que? A mata me dá tudo que preciso. Tu sabes que folhinha é essa? Da guabiroba. Uso quando tô mal dos intestinos ou desidratado. Mas aposto que o moço da cidade não sabia.
Não dá para condenar a escolha de Geib. Se alguém quisesse se isolar num recanto bonito do mundo, as praias do Jacuí próximas a Vale Verde são uma dadivosa opção. Areias límpidas e matas silvestres formam a paisagem nos 60 quilômetros que separam o município da vizinha cidade de Rio Pardo. Como Geib, quem adora o silêncio poderia muito bem escolher um lugar assim para viver. Enquanto o mundo ferve com acontecimentos dos mais variados, o homem de 83 anos vive em um elo perdido, onde a ganância não existe, em que a paz ainda é uma bênção e a natureza um paraíso.
Curiosidades:
– Banho de corpo, até alguns meses atrás, só de vez em quando, nas águas do Rio Jacuí. Agora tem um poço artesiano e um chuveiro aquecido por um gerador.
– Sua ligação com os acontecimentos locais e mundiais chegam por meio de um radinho a pilhas e também por uma TV movida a bateria.
– Serviu no quartel no ano de 1941, ano em que a região foi atingida pela maior enchente já registrada.
– Participou da Segunda Guerra Mundial na Itália, época em que era um dos cozinheiros do exército brasileiro.
– Se um dia precisar de socorro médico, terá que torcer para que consiga navegar por aproximadamente três quilômetros, até encontrar um vizinho que possa lhe ajudar.
– Foi assaltado uma vez em sua casa, por um grupo de pessoas que o amarraram e fugiram levando alguns pertences.
– Durante estes anos todos, nunca teve contato com algum familiar seu.
fontes:
Revista Exceção, Ano 2, n. 2, 2007.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2008/05/expedicao-jacui-a-historia-do-ermitao-da-ilha-1851719.html
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